Blog do Professor Márcio

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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O Garimpo em Paracatu: Uma história que precisa ser contada – Capítulo VI


Um fato notável, que se constata a partir da documentação relativa à história do garimpo nas décadas de 1980 e 1990, é que, embora tenha havido forte resistência dos garimpeiros ao poder da mineradora RPM, nunca houve uma liderança a conduzir o movimento. 
Num breve período, entre 1987 e 1989, elementos que conduziam a Cooperativa dos Garimpeiros pareciam despontar como lideranças ao se colocarem à frente de negociações com o governo municipal e o DNPM. Como a grande massa de garimpeiros era analfabeta ou, pelo menos, semi-analfabeta, algumas pessoas mais esclarecidas, donos de garimpo, como Dr. Avelino Couto, José Osório, Rubens Lisboa e Joanil Lima negociaram com a Prefeitura e o DNPM um programa de despoluição e desassoreamento dos córregos onde ocorria o garimpo. Foi um curto período de articulação da resistência, logo surpreendida pela primeira decisão de fechar o garimpo, determinada pelo Secretário de Estado do Meio Ambiente e Presidente do COPAM, José Ivo Gomes, em outubro de 1989.
Sem liderança, a resistência dos garimpeiros prosseguiu espontânea e fragmentada. Em 1995, apareceu uma nota no jornal O Movimento intitulada “Utilidade pública e preservação ambiental”, dando conta da criação, em 11 de junho de 1995, do Sindicato dos Garimpeiros de Paracatu. Não há registro de ações desse Sindicato à frente do movimento dos garimpeiros e do mesmo modo que surgiu ele desapareceu, na obscuridade.
A posição dos setores dominantes da sociedade paracatuense em relação ao domínio da RPM sobre o tecido social pode ser melhor esclarecida pela análise do fato ocorrido poucos meses antes de um acontecimento trágico em meados de 1998. Em 28 de novembro de 1997, a Câmara Legislativa concedeu o título de Cidadão Honorário de Paracatu ao gerente geral da mineradora, em sessão solene seguida de coquetel, onde estava presente a nata da sociedade local. Esse título foi iniciativa de um vereador que, em 1991, havia atuado como advogado de defesa de garimpeiros presos e torturados a mando da mineradora, como também atuou na denúncia de agressões ambientais que estavam sofrendo as populações dos bairros periféricos da mina, por causa das explosões na área de lavra. Trecho do seu discurso de justificativa da concessão do título ao gerente geral da RPM mostra a relação da classe social abastada diante do novo poder que se instalou e se estendia numa rede cada vez mais ampla: “Ainda bem que podemos contar com tua pessoa no contexto econômico de Paracatu, que além de dirigir a empresa, tem em sua conduta a sensibilidade social para ajudar humanitariamente nossa comunidade (...)se irmanando com todos seus cidadãos da vestuta Paracatu do Príncipe, na consecução do bem e amparo aos menos favorecidos” (O Movimento, Ed. 145, dez/1997b, p. 8).
Saudada na “casa do povo” por um expoente da classe dominante local, a empresa recebeu desta um aval para intensificar a repressão aos garimpeiros. A despeito de reprimir brutalmente a classe mais pobre da cidade e se orientar apenas pelos ditames do capital, a mineradora conseguia produzir um discurso exatamente oposto, de conduta humanitária com objetivo de amparar os menos favorecidos. Esse discurso ainda hoje continua produzindo as verdades do poder dominante e legitimando suas ações.
O acontecimento trágico, a que nos referimos anteriormente, no violento conflito entre os garimpeiros e a RPM, foi a agressão armada a três garimpeiros, resultando na morte de um deles e ferimentos nos outros dois. O aspecto deplorável deste fato é que a imprensa só o noticiou com uma nota de esclarecimento da empresa. Não foi apresentada matéria jornalística, investigativa, que deixasse claro para a sociedade o que tinha ocorrido: o discurso da empresa calou todas as vozes.
A nota que a RPM divulgou à imprensa, entre outras coisas, dizia que na madrugada de 27 de junho de 1998, quatro vigilantes surpreenderam os garimpeiros no canal de rejeito e que estes reagiram com paus e pedras. Afirma a nota:
O saldo desta invasão é lamentável. Os funcionários da RPM saíram feridos, sendo que um deles em estado grave e, segundo consta, três invasores também foram feridos. Um destes veio a falecer após ser submetido a uma cirurgia. Foi confirmado que todo atendimento de primeiros socorros aos feridos, sejam funcionários da empresa ou invasores, foi prestado pela equipe do serviço médico da própria RPM, sendo conduzidos, a seguir, para hospitais da cidade na ambulância da empresa. (...) Infelizmente, mesmo após várias detenções e prisões efetuadas, os invasores vêm se organizando e constituindo quadrilhas cada vez mais perigosas e violentas.

Observa-se, na nota, que a mineradora se colocava como vítima da violência e ainda assim prestou todos os serviços médicos no socorro aos garimpeiros, aos quais classificava como bandidos constituídos em quadrilhas perigosas e violentas.
A versão dos garimpeiros nunca apareceu na imprensa de Paracatu; na época, sequer foram divulgados os nomes dos atingidos, tratados assim como “não-pessoas”. Os três garimpeiros eram irmãos, residentes na localidade Machadinho, hoje reconhecida como comunidade quilombola. Nasceram naquele local, como descendentes de escravos que se fixaram próximo ao Morro do Ouro, cujo modo de subsistência sempre incluiu a faiscação naquela área, até que a mineradora se instalou ali. Seus nomes: Luis Oliveira Lopes, que morreu logo após chegar ao hospital, José Oliveira Lopes, que foi atingido na perna e ficou paralítico, vindo a falecer dois anos depois em consequência dos ferimentos, e Evandro Oliveira Lopes, que foi atingido no braço e ainda está vivo, embora com o braço inutilizável para o trabalho.
A versão dos garimpeiros somente surgiria dez anos depois no documentário Ouro de Sangue, através do sobrevivente Evandro Oliveira Lopes. Ele afirma que:
Teve um telefonema que “os Canela tava lá”. Eles foram pra estrada pra esperar nós. Aí, nós passou pra dentro, eles deixou nós passar, só que nós chegou lá, na beirada lá, nós viu que não dava pra trabalhar. Tinha vigilância pra todo lado lá. Aí meu irmão falou assim: vamos voltar pra trás! Nós já tava saindo de dentro da firma, pegou material, pegou nada, aí o que nós recebeu foi só os tiros. Aí, eles falou assim: “É os Canela, vamos matar agora”. Quando eu cheguei a pegar meu irmão assim, aí só vi meu braço... desceu o braço. Levei só um tiro no braço, hoje em dia ele é torto (...) não aguento pegar um peso. O outro tomou um tiro na perna, ficou inválido, andando aí de cadeira de rodas muito tempo, ficou na cadeira de rodas até morrer.
Orlando Oliveira Lopes, sobrevivente da chacina dos Irmãos  Canela, presta depoimento ao filme documentário Ouro de Sangue, em 2008.
 Em depoimento registrado nesta pesquisa, a mãe dos três garimpeiros atingidos, Sra. Ana Lopes de Morais, e sua filha Aparecida Teixeira dos Santos, avançam com uma informação fundamental para mostrar os métodos cruéis, desumanos e repulsivos da repressão aos garimpeiros por parte da mineradora: os três irmãos foram atingidos por balas dundum.
Bala dundum é o nome do projétil concebido para se expandir e se fragmentar dentro do alvo atingido, provocando um ferimento extenso e dores lancinantes. Por motivos humanitários, a Convenção de Genebra de 1980, da qual o Brasil é signatário, através do seu Protocolo I sobre Fragmentos Não-Detectáveis, proibiu o uso de armas de fogo que podem ser consideradas como excessivamente lesivas ou geradoras de efeitos indiscriminados, como é o caso da bala dundum
As depoentes, ao descreverem o episódio, assim se expressam:
Aparecida: (...) Um morreu na hora, o outro depois de algum tempo...
Ana: A perna esbagaçou tudo o osso, o outro destruiu a barriga, virou carne moída...
Aparecida: Porque eles usou aquela bala que explode, ela destruiu a perna dele.
Márcio: É? Aquela bala que explode dentro da pessoa?
Ana: É, aquela que eles usou pra matar...
Aparecida: Aí, deu um tempo, depois ele acabou morrendo devido ao problema. A gente não sabe direito como é que foi esse processo, eu mesma não sei te dar informação mais precisa, não.
Ana: Como é que eu posso agradecer a essa RPM?
Aparecida: Nada! (...)
Ana: Pois é, ele morreu por causa disso. Eu não falo bem dela nem lá dentro do escritório é que eu não falo.
Márcio: Porque esse tipo de munição é proibido.
Aparecida: Foi o que na época as pessoas, todo mundo falou que era proibido, não podia.
Ana: Todos dois, pai de família.
Aparecida: Se não fosse esse tipo de bala eles não tinham morrido.
Ana: Todos dois novo, pai de família, largou a família tudo aí.
(Entrevista realizada pelo Autor em 04/01/2012)
Ana Lopes de Moais, conhecida como Dona Tuta, mãe dos Irmãos Canela, nascida e criada no Machadinho.
Não obstante esse crime repugnante, afora o boletim de ocorrência, que é obrigatório num caso destes, não houve investigação policial e muito menos processo criminal. Houve um efeito silenciador e conivente. José Luis Oliveira Lopes contratou advogado, inclusive porque ficara paralítico e queria reparação; entretanto, seu advogado não deu surgimento a um processo criminal; sem condições para se tratar, os ferimentos recebidos levaram o garimpeiro à morte, sem reparação.
Você, caro leitor, certamente deve estar se perguntando: - Como reagiram as autoridades públicas? Como reagiu a sociedade paracatuense? Como reagiu cada um de nós diante dos crimes torpes praticados pela mineradora estrangeira contra nossos concidadãos? Vejamos no próximo capítulo.

Palavras-chave: Paracatuarsênioouromeio ambiente; garimpoGarimpo em Paracatu

sábado, 19 de janeiro de 2013

O Garimpo em Paracatu Uma história que precisa ser contada – Capítulo V

A proximidade do Natal de 1990 foi marcada por um evento elucidativo da dramática situação de miséria dos garimpeiros de Paracatu, sem oportunidades de trabalho digno e honesto.
Condoído com a miséria que se espalhou, o batalhão local da Polícia Militar cadastrou cerca de 300 famílias para receber uma “cesta de Natal”. Contava-se com a oferta de 100 unidades de cestas a serem doadas pela PM de Belo Horizonte e as restantes seriam oferecidas pela Prefeitura Municipal de Paracatu, naquela época sob o comando do Prefeito Arquimedes Borges. De acordo com o jornal O Movimento (Ed. 10, dez/1990 a jan/1991, p. 3), no dia 11 de dezembro de 1990, desde as 6 horas da manhã extensa fila se formou para receber as cestas e a partilha de um caminhão de abóboras doado pelo Sr. José Abreu, sendo que a distribuição iria iniciar-se às 10 horas. Porém, pouco depois de iniciada a distribuição, as cestas acabaram, porque a Prefeitura não deu a contribuição esperada. Os garimpeiros revoltaram-se e o comandante local da PM procurou contornar a situação, recomendando aos garimpeiros que procurassem outra atividade. Então, o grupo de garimpeiros dirigiu-se para a Prefeitura Municipal para conversar com o Prefeito Arquimedes e eles lá ficaram até às 13 horas. Contudo, o prefeito recusou-se a recebê-los.
A dramática situação dessas famílias impelia os garimpeiros para os canais de rejeito da RPM, acentuando o conflito. A empresa não apenas endurecia o discurso, como também estreitou seus vínculos com as polícias militar e civil, utilizando os agentes públicos para vigiar e punir os garimpeiros.


O canal de rejeito conduz  a lama que sai da Usina de Beneficiamento da RPM  para  a área da barragem. O ouro não recuperado no beneficiamento, por sua maior densidade, acaba se depositando no fundo do canal. É ali que os garimpeiros procuram retirá-lo.
Em abril de 1991, notícia publicada em O Movimento relatava que cinco pessoas foram presas pela Polícia Civil, às quais o Juizado determinou prisão temporária de cinco dias, apontados pela RPM por roubo de concentrado de ouro. A Polícia não apenas deteve os acusados além do prazo determinado pelo juiz, como também torturou um dos presos, Esmeraldo Rodrigues Andrade, ex-funcionário da RPM. Relatou Esmeraldo que os policiais o levaram algemado para uma área de cerrado próxima a Unaí e lá teve sua perna esquerda imobilizada com um pedaço de pau; em seguida, os policiais espancaram a sua perna com uma palmatória que tinha uma lona de pneu afixada, e depois passaram a espancar seus rins. Esmeraldo foi examinado pelo médico legista, Dr. Ricardo Guazelli, que confirmou o espancamento.


Garimpeiros se reúnem na frente da Prefeitura Municipal para protestarem contra a repressão e o desemprego. Fonte: O Movimento, Ed. 10, dez/1990 a jan/1991, p. 3.
Preocupado com a situação local, que tinha de um lado a poluição ambiental e a proibição legal do garimpo, que ainda continuava ativo na clandestinidade, e de outro o problema social do desemprego, o juiz da comarca, Fernando Humberto dos Santos, convocou uma reunião com as principais lideranças políticas e comunitárias da cidade para a discussão do problema. Esta reunião redundou na formação de uma comissão, a qual nunca chegou a funcionar.
Ao final do ano de 1991, uma notícia viria a assustar a opinião pública paracatuense. Sob o título “Segurança da RPM atira em garimpeiro”, o jornal O Movimento informava que seguranças da mineradora foram denunciados novamente de praticarem violência contra cidadãos paracatuenses no afã de estarem resguardando o patrimônio da empresa. Desta vez, três garimpeiros foram agredidos na área da barragem, sendo que um deles foi atingido por tiro e levado para hospital em Brasília; os outros dois levaram surra com cabo de aço, tendo feito exames de corpo delito, após apresentarem denúncia ao Ministério Público. Este episódio foi bem descrito pelo jornal O Movimento (Ed. 26, dez/1991, p. 12):
"O tiro disparado pelo segurança da RPM atingiu o joelho esquerdo do garimpeiro Romeu da Silva Pereira. Romeu está internado em Brasília, mas seu primo José Mendanha Sobrinho presenciou o fato. Mendanha disse que o episódio ocorreu por volta das 6 hs. do dia 7 passado. Somente ao meio dia Romeu veio a ser socorrido pela PM, pois os agressores fugiram, deixando-o sozinho com a vítima. Segundo ele, o tiro foi disparado pelo encarregado de segurança Francisco Cipriano, que estava acompanhado de dois outros seguranças da empresa, um japonês de nome Roberto e um ex-vigilante da agência local do Banco do Brasil, de nome Antônio."
Apenas para esclarecer melhor a repressão e a resistência dos garimpeiros, os seguranças contratados pela RPM eram, na sua maior parte, pessoas truculentas, que não hesitavam em usar a tortura em suas práticas de trabalho. Odiadas pelos garimpeiros, algumas delas foram alvo de violência, como o tal Roberto "Japonês", citado acima: uma noite, após sair de uma festa no Jóquei Clube Paracatuense, ele foi agredido por um grupo de pessoas não identificadas, que o deixaram quase morto no asfalto da Av. Olegário Maciel. Depois desta agressão, Roberto "Japonês" deixou a cidade, sob risco de morte. 
Garimpeiros são torturados a mando da RPM. Fonte: O Movimento, ed. 13, abril de 1991.

Analisando-se as matérias jornalísticas que envolviam a RPM, observa-se que as denúncias de danos ambientais e as práticas truculentas da empresa contra os garimpeiros se avolumavam: agressões, tiros e torturas foram incluídos no cotidiano da repressão; pior, eram tolerados pela sociedade. A imprensa, entretanto, concedia espaço livre às denúncias e também reproduzia as versões da empresa, dando curso ao contraditório. No início de 1992, diante de denúncia de poluição dos rios a jusante da barragem de rejeito, feita por moradores daquela região e encaminhada à Câmara pelo vereador José Maria Andrade Porto; das explosões na área de lavra, conforme denúncia da população dos bairros periféricos, encaminhada pelo vereador Silvano Avelar; da violência contra os garimpeiros, denunciada pelo vereador Alaor Neiva, e do desprezo da mão de obra local em favor de trabalhadores de fora, conforme argumentava o presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Extrativa, Mauro Muniz, a empresa resolveu agir.
Daí em diante, observa-se que a RPM rearticulou a sua comunicação social, construindo um discurso hegemônico, silenciador, que restringiu e em certas situações até mesmo eliminou a voz dos atingidos: a empresa se sentia com o poder de determinar a verdade dos fatos.
Essa mudança na produção do discurso, a voz da verdade estabelecida pelo poder, foi assinalada por uma visita à Câmara Municipal, no dia 6 de abril de 1992, de uma equipe técnica da RPM, liderada pelo diretor Edson Izabella. Naquela ocasião, a equipe da empresa refutou as denúncias e estabeleceu uma classificação definitiva dos garimpeiros que entravam na sua área de rejeitos. De acordo com Edson Izabella a violência contra os garimpeiros não ocorria, o fato é que se tratavam de “bandidos e criminosos integrantes de gangues”. Essa pecha “bandidos e criminosos”, com algumas variações iria estar presente em todas as falas da empresa, quando se referiam aos garimpeiros, como uma maneira de justificar e legitimar a violência da repressão.
A estratégia do poder na produção do discurso verdadeiro, daí em diante, não incluiria apenas reprimir e negar, mas também cooptar, através de um programa de filantropia, apoios, doações, visitas e veiculação na mídia de tudo o que pudesse construir uma imagem positiva de uma organização parceira da comunidade.
Por outro lado, a brutalidade da repressão aos garimpeiros atemorizava até mesmo aos mais corajosos que se aventuravam a penetrar a área de rejeito da RPM, de tal modo que, em novembro de 1993, o garimpeiro Luiz Monteiro da Silva, 32 anos, morreu em consequência de ataque cardíaco dentro da área da empresa. A nota que saiu na imprensa paracatuense informava que um grupo de garimpeiros foi surpreendido pela segurança e fugiu, mas um deles, que sofria do mal de Chagas, correu em direção à guarita da Ivaí Engenharia, empreiteira da mineradora. Conduzido ao hospital, veio a falecer. A nota também informava que os vigilantes teriam efetuado disparos para o alto, mas que o assessor de relações públicas negara que tivesse ocorrido qualquer disparo ou que alguém tivesse sido ferido. Na imprensa, pela primeira vez nenhuma voz foi dada aos atingidos pela violência, cujas versões certamente contestariam a “verdade” propagada pela mineradora. 
A violência contra os garimpeiros, por mais repugnante possa lhe parecer, caro leitor, estava apenas dando seus primeiros sinais. Veja a sequência no próximo capítulo.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O Garimpo em Paracatu: Uma história que precisa ser contada – Capítulo IV


Refletindo-se sobre os fatos que levaram à proibição do garimpo em Paracatu, pode-se concluir que o grupo socialmente dominante da cidade, constituído por grandes proprietários de terra, e parte da classe média estavam incomodados com a presença da numerosa classe baixa desempregada, cuja alternativa econômica mais viável era o garimpo. Foram aquelas duas classes sociais que deram suporte local à campanha do Estado e da mineradora RPM contra os garimpeiros.
Uma das formas de resistência do garimpo a essa campanha foi a criação da Cooperativa dos Garimpeiros, que buscou uma base representativa para a mobilização social e para a ação junto aos órgãos públicos que agiam na questão do garimpo.
Enquanto isso, o Prefeito Municipal, Sr. Diogo Soares Rodrigues, apoiou a busca de uma solução que atendesse a questão ambiental, a população de Paracatu e os garimpeiros. O Conselho Municipal de Conservação e Defesa do Meio Ambiente – CODEMA apresentou, em 1988, um plano de despoluição ambiental realizado pelo DNPM, que contemplava testes de grandes amostras com o recuperador de mercúrio, instalação e operação central de queima e bateiamento, caixa de bateiamento, retorta de mercúrio e capela com ventilação. Além disso, sugeriu uma dragagem geral dos córregos afetados pelo garimpo, eliminando-se o mercúrio.

Reunião do Prefeito Diogo (esquerda) com garimpeiros. Ao microfone, Dr. Avelino, ex-proprietário de garimpo.
Fonte: Folha do Noroeste, Ed. 41, 09-02-1988, p.11.
Havia vozes a favor da compatibilização da atividade garimpeira com um programa de preservação ambiental e valorização do garimpeiro, como a de Octávio Eliseo Alves de Brito, engenheiro de minas, professor de Tratamento de Minérios da Escola de Minas de Ouro Preto, pessoa que mais tarde ocuparia a Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Porém, se essa compatibilização era possível técnica e socialmente, não havia vontade política do Estado para que isto ocorresse.
Poucos meses após o início da lavra na Mina Morro do Ouro aconteceu um fato que iria precipitar a decisão de fechar o garimpo em Paracatu: os garimpeiros descobriram que os rejeitos descarregados pela RPM na barragem continham ouro em quantidade vantajosa. A informação vazou e, em seguida, dezenas de garimpeiros começaram a minerar no canal que segue da usina de beneficiamento para a barragem. Mesmo tratando-se de um material rejeitado, a empresa agiu com força bruta, acusando os garimpeiros de invasão da propriedade alheia e furto. Em 27 de fevereiro de 1988, a guarnição da Polícia Militar foi chamada pela empresa ao Morro do Ouro, onde prendeu 20 garimpeiros; em 2 de março, foram 31; seis no dia seguinte; três no dia 8; seis no dia 12 e mais sete no dia 15 de março. Segundo a empresa, a polícia foi acionada não apenas com a intenção de evitar invasão e furto, mas para evitar que a empresa pudesse ser acusada pela morte de garimpeiros por intoxicação.
O noticiário da imprensa paracatuense acrescentou uma informação curiosa, pelo menos para a época. Até então a RPM comunicava à sociedade que seus processos eram “limpos”, não gerando nenhum agente nocivo, exceto o cianeto, que logo era inativado na barragem. Ainda hoje, a empresa sustenta esse discurso: por exemplo, no processo de licenciamento ambiental da nova barragem do Machadinho, na página 9, um resumo sobre o meio biótico na barragem, afirma que o local atrairia “novas espécies de fauna, principalmente aves aquáticas, trazendo enriquecimento da biodiversidade, fato já observado na barragem atual” (grifo nosso). Isto é, a empresa apresenta a barragem, para o órgão de licenciamento ambiental, como um local capaz de enriquecer a biodiversidade, portanto, ecologicamente equilibrado. No entanto, para justificar a prisão dos garimpeiros, ela apresenta a barragem como depósito de lixo tóxico. E não há dúvida, quanto a isto, nas palavras do então responsável, pelo setor de saúde da empresa, o médico José Guilhermo Calderón Spinoza, também veiculadas no texto do mesmo noticiário: “os restos químicos existentes na barragem podem provocar doenças nas pessoas (...), tais como dermatites e um leque de outros problemas (...), em caso extremo, levar à morte”.
Porém, a mineradora, naquela época, ainda não detinha a propriedade de todas as terras vizinhas à barragem e, à medida que se fazia o alteamento desta, a lama entrava em terrenos de proprietários confrontantes. Esta informação pode parecer absurda, pois uma das condições para o licenciamento da barragem de rejeitos era a posse, pela mineradora, dos terrenos que seriam sepultados pelo material tóxico. Um desses proprietários era o Sr. Antonio Olar Campos, o Dedé da Farmácia, que permitiu aos garimpeiros a extração do ouro contido na lama que invadia as suas terras. Informações colhidas pessoalmente dão conta de que 200 a 300 pessoas trabalhavam no lado das terras pertencentes a Dedé.
Marchas e contramarchas, em 18 de setembro de 1989, cerca de 100 homens da Polícia Militar de Minas Gerais, por determinação do governador do Estado Newton Cardoso, fecharam o garimpo em Paracatu. Não houve resistência dos garimpeiros e os policiais percorreram a área lavrando o termo de embargo e aplicando multas variáveis conforme o número de bombas. As máquinas foram lacradas, utilizando-se correntes e selos de plástico. Entretanto, a PM informou que os garimpeiros poderiam reiniciar suas atividades desde que se credenciassem junto aos órgãos competentes e assinassem um compromisso de cumprimento da legislação ambiental, ficando proibidos de utilizar poluentes químicos como o mercúrio.
Depois desse episódio o garimpo mecanizado em Paracatu refreou suas atividades por um período, mas depois continuou, desafiando a ordem de fechamento, alternando períodos de maior ou menor intensidade. Houve tentativas de reorganizá-lo, atendendo às exigências ambientais, mas todos os esforços esbarravam na rigidez e má vontade do Estado, determinado a eliminar qualquer forma de produção que contrariasse seus interesses e os do grande capital. Isso veio a culminar com a resolução assinada pelo Secretário de Estado de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, Jorge Gibran, que determinou a proibição imediata do garimpo a partir de 7 de setembro de 1990. Os empresários do garimpo abandonaram suas atividades ou migraram para outras regiões, mas o trabalhador do garimpo – aquele de caixotinho e bateia, pobre, desempregado e sem qualificação profissional – não tinha outra opção que não fosse lançar-se clandestinamente na lama da barragem de rejeito da RPM, para sustentar sua família.

Garimpeiros presos: trabalhadores desempregados, de origem negra.
Fonte: Folha do Noroeste,  Ed. 43, 20-03-1988, p. 13.
O Brasil vivia os tempos nefastos da inflação galopante e do desemprego. De repente, uma simples “canetada” de um burocrata insensível, feita para atender ao poder e à ganância de uma empresa estrangeira, lançou na miséria centenas de famílias paracatuenses que sobreviviam da extração do ouro de sua terra natal, lançado como rejeito. A partir do próximo capítulo veremos como se deu a resistência e a dura repressão que se abateu sobre os garimpeiros de Paracatu.

O Garimpo em Paracatu Uma história que precisa ser contada – Capítulo III


Como vimos nos capítulos anteriores, quando se fala do garimpo em Paracatu é preciso distinguir o garimpo tradicional ou artesanal, cujo objetivo era a subsistência ou a complementação de renda da família do garimpeiro, e o garimpo mecanizado, empreendimento capitalista cujo objetivo era o lucro.
No garimpo mecanizado, o cascalho extraído nas praias era inicialmente passado em calhas carpetadas, onde se fazia uma primeira concentração. Os carpetes eram depois lavados num tambor de 200 litros, processo repetido durante alguns dias, ás vezes uma semana. Depois, o material do tambor era peneirado em um caixote, para diminuir a quantidade de estéril. Em seguida, o material do caixote era concentrado na bateia. Nessa fase final, pingava-se sobre o concentrado de bateia uma quantidade de mercúrio que, sendo agitada, formava um amálgama com o ouro. O resultado é uma espécie de bola ou bolacha de mercúrio-ouro e algumas impurezas. Levada para um cadinho, esse amálgama era queimado com maçarico, evaporando-se o mercúrio e restando o ouro com as impurezas, a maior parte constituída de minerais pesados.
Quando se iniciou a prática de amalgamação em Paracatu, todo o amálgama era queimado na própria área do garimpo, ao ar livre. Mais tarde alguns compradores de ouro montaram oficinas de queima do amálgama, no centro da cidade, ou simplesmente queimavam o amálgama em suas próprias casas. Há referências de oficinas que usavam retortas para conter o gás de mercúrio e exaustores de ar. Havia donos de garimpo que também eram donos de oficina de compra e queima de amálgama. Também existiam compradores de ouro de outras localidades, que adquiriam o amálgama diretamente de donos de garimpo, num esquema competitivo. Ainda assim, alguns donos de garimpo persistiam em realizar a queima ao ar livre, pelo menos de uma parte da produção, uma vez que, no ambiente inflacionário em que se vivia, a posse do ouro era mais importante do que a do dinheiro. Com o ouro, que se valorizava diariamente frente ao papel-moeda, podia-se adquirir máquinas e mercúrio pagando-se à vista e obtendo-se descontos, refletindo em maior lucro para o garimpo.
Não se sabe até que ponto a queima do amálgama em oficinas no centro da cidade afetou o ambiente, uma vez que não foram realizados estudos para dimensionar o impacto. Notícia publicada em jornal local, em janeiro de 1987, dava conta de contaminação por mercúrio de um ex-garimpeiro, que tinha virado comprador de ouro. Nas duas atividades, ele jamais se preocupara com o problema e, por isso, de modo irracional, fazia amalgamação e queimava o amálgama sem os devidos cuidados de proteção. Enfim, depois de três anos, descobriu que seus sintomas neurológicos eram ocasionados pela contaminação por mercúrio, com teor de 2,3 microgramas no sangue. Essa notícia preocupou os donos de dragas, de maneira que um deles argumentou que estava sendo feito um alvoroço, concentrando o problema da contaminação química apenas nos garimpeiros, esquecendo-se da grande mineradora que estava sendo instalada na cidade .

Fonte: Folha do Noroeste, Ed. 32, set.1987, p. 10.

A campanha para a proibição do garimpo em Paracatu coincidiu com o início das atividades da mineradora Rio Paracatu Mineração S.A., em 1987, naquela época controlada pela Rio Tinto Zinc. Embora este pareça ser o fator determinante para a proibição, contribuiu também a imagem da devastação e degradação social dos garimpos da região Norte, bastante veiculadas na mídia nacional.
Não existem dados sobre a disseminação da prática da queima ao ar livre, nem da quantidade de mercúrio que foi empregada nos garimpos de Paracatu. Os pretensos estudos, que nunca foram divulgados à população local, apenas serviram para dar base a uma campanha contra toda forma de garimpo, de maneira irracional e beirando a histeria. Essa campanha foi orquestrada pela Rio Paracatu Mineração e órgãos públicos, como a FEAM e o DNPM, e apoiada por grupos locais sensíveis à questão ambiental.
Em agosto de 1990, o jornal O Movimento transcreveu uma notícia publicada pelo jornal Estado de Minas, de Belo Horizonte, informando que a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM) apresentou um relatório de estudos realizados em Paracatu, “concluindo ser evidente o elevado grau de contaminação ambiental e das próprias pessoas pelo mercúrio”. Por isso, a solução seria a retirada do local das pessoas contaminadas, encaminhando-as para tratamento intensivo, e os moradores das áreas afetadas que apresentassem taxas normais de mercúrio no sangue deveriam realizar exames médicos e psicológicos periódicos.
Quando se analisa a notícia acima citada à luz dos fatos, algumas questões precisam ser levantadas. Primeiro, se realmente houve um estudo de tal envergadura, por que a sociedade paracatuense, garimpeiros principalmente, o desconheciam? Tal estudo só poderia ser realizado a campo, entrevistando pessoas nas áreas de risco e colhendo delas material para análise, de maneira que é impossível realizá-lo sem que as pessoas se dessem conta disso. Em segundo lugar, se o estudo foi realmente realizado em base científica, por que não foram apresentados os resultados à quem mais eles poderiam interessar – a sociedade paracatuense, garimpeiros principalmente? Finalmente, se uma instituição do Estado, como é a FEAM, viu a necessidade de remover e tratar urgentemente as pessoas afetadas, quais eram essas pessoas e por que isso não foi realizado? Neste caso, estaríamos diante de uma omissão grave do poder público, passível de responsabilização.
Entretanto, estudos recentes mostram que a contaminação do solo e das águas superficiais por mercúrio na região de Paracatu não chegou a nível de contaminação generalizada. Os pesquisadores Senderowitz e Cesar, da UnB, analisaram 23 amostras de água fluviais, 17 amostras de solo e 17 amostras de sedimentos fluviais da região de Paracatu e concluíram que as concentrações de mercúrio estavam em conformidade com o valor estipulado pela OMS e da Portaria 518 do Ministério da Saúde (10 μg/L). Outro pesquisador da UnB, Gurgel, realizou um estudo geoquímico de água e sedimentos de fundo para avaliar os impactos ambientais na bacia do Córrego Rico, concluindo que os fatores de contaminação por metais são baixos, que a distribuição geoquímica do mercúrio em sedimentos é uniforme, que os sedimentos de fundo apresentaram variações dentro da normalidade, segundo a legislação, e que a deposição de esgoto doméstico sem tratamento no córrego é o principal agente contaminante.
Assim, fica evidente a mentira do “elevado grau de contaminação ambiental pelo mercúrio” na cidade de Paracatu. Entretanto, a campanha difamatória contra o garimpo foi fundamental para a condenação da prática garimpeira, origem desta cidade centenária.
Tanto as autoridades, quanto as instituições ligadas à administração pública, assim também a parte mais esclarecida da sociedade e a imprensa local, não se preocuparam em divulgar verdades científicas e, principalmente, realizar um trabalho de educação socioambiental junto à comunidade paracatuense, sobremaneira junto ao garimpo e oficinas de queima de amálgama. Um evento, até certo ponto hilário, do irracionalismo da campanha contra o garimpo, foi divulgado por um jornal local, em 1987, com o título “Porco nasce com face humana: Fetos retirados de porca assombraram Paracatu com faces de outros animais, suspeita-se de contaminação por mercúrio, usado no garimpo”, conforme imagem abaixo.
Fonte: Folha do Noroeste, Ed. 29, ago. 1987, p. 11.

 A correlação entre os fetos deformados e o garimpo correu por conta da campanha maldosa, uma vez que no final do artigo aparece um depoimento de uma pessoa, cujo nome não foi citado, que se dizia dono da porca e afirmava ser tudo mentira, que a porca tinha sido morta em uma fazenda muito distante e os fetos levados para a cidade.
Porém, a sorte estava lançada e a proibição de toda forma de garimpo em Paracatu seria a primeira vitória da mineradora que se instalara no Morro do Ouro. No próximo capítulo veremos alguns desfechos desta batalha.

O Garimpo em Paracatu: Uma história que precisa ser contada – Capítulo II


Quando a RioTinto Zinc do Brasil, uma transnacional inglesa, bloqueou a jazida de ouro no Morro do Ouro e iniciou o desenvolvimento e lavra do depósito, houve uma verdadeira “corrida do ouro” para os cascalhos auríferos de Paracatu. Falava-se que em Paracatu havia 90 toneladas de ouro e que ele brotava nas ruas. Não se pode precisar o número de pessoas atraídas ao garimpo, é estimativa que varia a gosto de cada um, sempre tendendo ao exagero, indo de dois mil a cinco mil.
Esse novo surto garimpeiro viria utilizar novidades tecnológicas de extração, como escavadeiras, tratores, dragas, bombas de sucção e de desmonte hidráulico; para a apuração final do ouro foi introduzida a amalgamação com mercúrio. Esse garimpo mecânico moderno exige capital e, sendo assim, o trabalho livre deu lugar às relações típicas do capitalismo entre patrão (dono do garimpo) e empregado (trabalhadores com vínculo empregatício informal).

Garimpo mecanizado no Córrego Rico. Foto de 1987.


 Os garimpos mecanizados em Paracatu funcionavam através de acordo entre o dono do garimpo e o dono do barranco, que era o proprietário do lote ou gleba onde iria ocorrer a extração. Pagava-se ao dono do barranco um valor fixo ou uma taxa sobre a produção ou ainda, como era mais comum, um valor fixo mais uma taxa sobre a produção. Nesse sistema, o garimpeiro, que antes exercia uma atividade livre, foi incorporado como empregado informal, isto é, sem registro em carteira.
No começo, existia muita mão de obra e pouca qualificação. Ninguém sabia trabalhar com as máquinas. Em média, pagava-se um salário mínimo e meio por mês, com prêmios sobre a produção que podiam chegar a 10%, distribuído para o grupo.
Uma pesquisa antropológica realizada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) por Parry Scott e outros mostrou que o assalariamento no garimpo mecanizado de Paracatu se distinguia dos outros serviços, aos olhos do garimpeiro ali empregado, por três aspectos: a figura do patrão-amigo, marcado pela proximidade e um certo companheirismo entre patrão e empregado; o crédito indireto, que se referencia ao fato de os garimpeiros poderem efetuar compra semanal no comércio local, contando com o crédito do dono do garimpo, e o regime de meia, que era a cessão das máquinas pelo proprietário a seus empregados, para que os mesmos pudessem trabalhar em horários alternativos (à noite ou final de semana), dividindo pela metade o resultado entre o empregador e o empregado.
Vários problemas sociais e ambientais ocorreram em Paracatu por conta do garimpo mecanizado, cujas consequências ainda se fazem sentir. Houve atração de aventureiros vindos de outras paragens, mas contestamos a afirmação de que uma leva de garimpeiros tenha “invadido” a cidade: é uma ideia fantasiosa, reprovada por estudos realizados. Os garimpeiros forasteiros (principalmente donos de garimpo) permaneceram pouco tempo na cidade e seu número não justifica o “inchaço” populacional de Paracatu naquela época. Esta afirmação é demonstrada pelo estudo da UFPE, que aponta a migração campo-cidade, dinâmica presente em todas as regiões brasileiras, como o fator fundamental do crescimento do número de garimpeiros dentro da cidade de Paracatu.
Na década de 1980, expandiu-se na região de Paracatu a agricultura intensiva e de alta tecnologia, com grandes investimentos direcionados pelo Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (POLOCENTRO), o Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER) e o Projeto de Colonização Paracatu Entre Ribeiros (PCPER), todos eles intensivos em capital e redutores de mão-de-obra. Os trabalhadores rurais, analfabetos ou de baixa instrução, eram inadequados para a nova agricultura que se instalou e acabaram “expulsos” do campo, indo habitar a periferia da cidade, onde também não havia emprego para eles. Assim, o garimpo surgiu para essas pessoas como uma forma de vida, mas esse afluxo humano a uma cidade de infraestrutura precária não poderia acontecer sem fortes impactos sociais.
O problema ambiental mais perceptível foi a alteração da paisagem ribeirinha. Enquanto o garimpo manual trabalhou em ritmo lento durante longos anos nas aluviões superficiais, o garimpo mecanizado não apenas teve um ritmo avassalador, pelo trabalho das máquinas e pelo emprego de grande número de garimpeiros, mas também porque removeu e processou os depósitos sedimentares da superfície até chegar à camada de rocha subjacente, denominada “laje”, escavações que, não raro, chegavam a 12 metros de profundidade.
De ambos os lados da calha do Córrego Rico existem os chamados “barrancos”, que são formados por uma camada depósitos argilosos, sob os quais ocorrem os cascalhos auríferos. A prática de extração era, inicialmente, dragar o leito do córrego, até chegar à laje; nesta situação, podia-se ver em que nível se encontrava o material rico; daí, ia-se avançando lateralmente, acompanhando o material rico, que às vezes chegava até ao barranco e o penetrava. Neste momento, para atacar o barranco, o garimpeiro fazia acordo com o proprietário do terreno, que normalmente envolvia o pagamento de um valor fixo mais uma percentagem da produção.
O material a ser lavrado variava muito, com camadas de seixos estéreis. Os donos de garimpo com maiores recursos contratavam tratores, retiravam as camadas de seixos e iam apenas no material com concentração de ouro. Principalmente no Guerra, fazenda que àquela época pertencia a Rubens Lisboa, onde a praia é mais extensa e era a mais produtiva, foram instalados moinhos a martelo. O material era retirado do leito do rio, triturado no moinho e passado numa bica forrada com carpete. Ao final do dia, o carpete era lavado dentro de um tambor, para depois ser passado na bateia. Esse processo foi utilizado depois que os garimpeiros descobriram que havia ouro incrustado em quartzo.




22 anos após o fechamento do garimpo mecanizado, suas marcas ainda estão presentes ao longo do Córrego Rico. Nesta imagem, obtida em agosto/2012 junto ao bairro Santa Lúcia, observam-se restos de escavação preenchida por água pútrida, ao lado de monturo de cascalho.

Diz-se que no Guerra houve muitos bamburros, nome dado pelos garimpeiros a depósitos excepcionalmente produtivos, algo acima de 200 gramas de ouro por semana por draga, quando o comum seria uma produção de 40 a 60 gramas de ouro por draga.
Na ocasião da operação de fechamento do garimpo mecanizado de Paracatu, em outubro de 1989, estavam em ação “156 dragas, 148 moinhos, 167 bombas de sucção e cerca de 1.400 pessoas diretamente ligadas ao garimpo”, segundo Oliveira Melo, em As Minas Reveladas. As atividades intensivas de extração ocorreram nas planícies fluviais existentes nas calhas dos córregos Rico, São Domingos, São Gonçalo, Água Limpa, Angelical e Santo Antonio, assim como nos ribeirões Santa Rita e São Pedro, todas da sub-bacia do Rio Paracatu, as quais sofreram descaracterização. Entretanto, ressalte-se que todas essas áreas foram mineradas desde o século XVIII, não existindo ali, portanto, uma natureza intacta, mas seguidamente modificada pela atividade humana e regenerada por si própria.
 Afora isto, outro problema ambiental trazido pelo garimpo mecanizado foi a introdução de um elemento extremamente nocivo às pessoas e ao meio ambiente, quando conduzido sem procedimentos técnicos adequados: a utilização da amalgamação por mercúrio. É este assunto que iremos analisar em nosso próximo capítulo.

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segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O Garimpo em Paracatu Uma história que precisa ser contada – Capítulo I


Quando Paracatu completa, a cada 20 de outubro, mais um aniversário de sua criação, quase invariavelmente se faz uma comemoração cívica com desfiles alegóricos de exaltação das raízes da cidade: o garimpo e a colonização portuguesa, sustentados pelo trabalho dos negros trazidos da África. A memória coletiva produz a revisão das lembranças para dar certo ar de “glamour” ao passado, depurando-as dos fatos inconvenientes para transformar o passado naquilo que deveria ter sido, eliminando as cenas indesejáveis e adequando as prediletas. Parece que na memória coletiva de Paracatu ficaram eliminados o sofrimento e a injustiça contra a raça negra escravizada – os primeiros garimpeiros –, para se criar o mito de uma sociedade harmônica, com os negros transformados em uma turma comportada, bem nutrida e feliz, sob o comando de brancos fraternos, tolerantes e cultos – a Paracatu do Príncipe.
Portanto, memória não é sinônimo de história ou de realidade histórica passada. Mas de qualquer forma, a memória é a matéria-prima da história, que dela se alimenta. Na medida em que a memória é uma construção coletiva, ela também faz uso do esquecimento (há esquecimentos que são usados para certos fins), pois ela expressa relações de poder e de interesses, sendo assim uma matéria-prima “adulterada”.
Nossa intenção é reescrever aqui a história do garimpo em Paracatu com base em registros encontrados principalmente no jornal O Movimento e em outros documentos aos quais tivemos acesso, complementando-os com depoimentos de pessoas relacionadas ao garimpo, a partir de um trabalho de pesquisa em nível de mestrado. Existe um período que nos interessa de modo especial: o garimpo mecanizado que se instalou em Paracatu no final da década de 1980 e a subsequente “invasão” da área da barragem de rejeitos da RPM. Apesar da proximidade na escala do tempo, existem poucos registros documentados deste importante período da história paracatuense, de maneira que se torna importante resgatar a memória viva de pessoas que estiveram envolvidas nos acontecimentos.


O garimpo artesanal em Paracatu


No início do século XVIII, quando a exploração do ouro fundou o povoado de São Luis das Minas de Paracatu, o garimpo era a forma avançada de produção, baseada no trabalho escravo e utilizando métodos rudimentares de separação, como o caixote e a bateia para a concentração do minério, e o imã e assopramento para retirar os minerais magnéticos presentes na ganga. Esse sistema foi responsável pelo esplendor da antiga Vila do Paracatu do Príncipe, que, entretanto, teve curta duração. Ainda no mesmo século, o ouro se esgotou nos cascalhos e a vila entrou em decadência. As grandes fazendas de criação extensiva de gado de corte tornaram-se a maior força da economia local, concentrada em poucas mãos. As práticas garimpeiras, no entanto, persistiram nas mãos de negros e mulatos, como forma de subsistência ou de complementação de renda.
Estatísticas referentes à população de Paracatu dão conta do esvaziamento demográfico que acompanhou o escasseamento do ouro.  Em 1746, quando ainda era Arraial de São Luiz e Santana das Minas do Paracatu, tomando-se apenas a população escrava, havia 7.392 pessoas. Porém, no início do século XIX, a população total de Paracatu – 2933 pessoas, dos quais apenas 266 eram brancos – não chegava à metade da população negra de 1746, no auge da mineração de ouro. Parte dos escravos do garimpo foi levada para outras regiões e atividades. Negros livres e mulatos livres se dirigiram a outras regiões ou permaneceram na vila, nas margens dos córregos ou em povoamentos rurais em torno do Morro do Ouro, onde também havia depósitos de ouro. Nasceram, assim, os bairros negros Santana e Arraial D’Angola e o povoado São Domingos, hoje reconhecido como quilombo.
Livre dos chamados “donos de garimpo”, a população pobre de Paracatu, na grande maioria afrodescendente, teve na técnica de produção do garimpo tradicional, sem utilização de amalgamação com mercúrio, importante instrumento de sobrevivência, que persistiu desde o século XVIII até a proibição do garimpo, na década de 1980. Tanto o fim do primeiro ciclo do ouro quanto o fim da escravidão foram marcantes para criar uma população negra livre, mas marginalizada social e economicamente, condenada ao desemprego ou ao subemprego. Especialmente no período de seca, quando escasseavam ainda mais as oportunidades de trabalho na agropecuária e em outras alternativas econômicas, como a agricultura de subsistência, eram os cascalhos auríferos que ofereciam oportunidade líquida de obter recursos financeiros.
As aluviões do Córrego Rico formavam “praias” de cascalho, com largura variável de alguns metros a dezenas de metros, onde lavadeiras de roupa, crianças e garimpeiros se misturavam. Cada estação chuvosa sempre recompunha a paisagem e depositava ouro nos sedimentos superficiais, oferecendo oportunidades de trabalho aos homens que não tinham renda suficiente para a manutenção da família, ou também para mulheres e crianças que buscavam uma complementação da renda familiar.
A foto a seguir ilustra as condições em que o garimpo tradicional se processava.
Garimpo artesanal na água límpida do Córrego Rico. Mulher trabalha com instrumentos rudimentares para retirar o ouro do cascalho, enquanto a roupa lavada seca no varal, ao fundo. Foto de Otto Dornfield (1938), gentilmente cedida pelo Arquivo Público Municipal de Paracatu.

O historiador Marcos Spagnuolo de Souza, no livro “Vidas Vividas em Paracatu” nos oferece depoimentos que ilustram a prática do garimpo artesanal em Paracatu na primeira metade do século XX: o uso de instrumentos rudimentares, como pá, enxada, caixote e pano; o ouro apurado na bateia, sem uso de mercúrio; o envolvimento da população pobre na prática do garimpo, inclusive mulheres e jovens.
Como não havia abastecimento público de água, que só foi implantado em 1958, exceto por alguns chafarizes no centro da cidade, a população se abastecia em cisternas de fundo de quintal ou nas cacimbas abertas nas praias do Córrego Rico. Portanto, o garimpo artesanal não poluía as águas, que se ofereciam límpidas. Uma alternativa de renda para as mulheres mais pobres, além do garimpo tradicional, era o trabalho como lavadeiras de roupa, e para isto as cacimbas eram fundamentais, especialmente no período de seca. Uma escavação aberta no cascalho pelos garimpeiros, para atingir camadas mais profundas que pudessem ser mais produtivas, acabava se transformando em cacimba, útil para as lavadeiras.
Essa descrição demonstra que o garimpo artesanal, longe de ser elemento de degradação ambiental, se harmonizava com a vida de grande parcela da população pobre de Paracatu, num quadro de sustentabilidade social e ecológica ao longo de várias gerações.
A estagnação econômica e o isolamento geográfico de Paracatu viriam a ser rompidos a partir do final da década de 1950, com a construção da nova capital brasileira. O “boom” econômico do município ocorreria na década de 1980, quando houve um grande surto garimpeiro, com uso de máquinas e de mercúrio, e se estabeleceram grandes projetos agrícolas com uso de tecnologia avançada de produção e dois grandes projetos de mineração – Morro do Ouro (ouro e prata) e Morro Agudo (chumbo e zinco). Este assunto será o tema de nosso próximo capítulo.

Palavras-chave: ParacatuKinrossarsênioouromeio ambiente; garimpo; mineração