Blog do Professor Márcio

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sexta-feira, 20 de março de 2009

OS BURITIS DE ARINOS


Eu não sabia para que servem certos hinos que somos obrigados a ouvir nas solenidades, especialmente aquelas com a presença de augustas autoridades, todas com ar muito grave, fingindo um respeito exagerado. Até que um dia, bem no meio do “Hino a Paracatu”, um de meus alunos – vou chamá-lo de Ricardo -, cutucou-me de leve e perguntou: - Professor, o que são buritis de Arinos?

Você conhece o estribilho? Paracatu do Príncipe / Do ouro e do esplendor / Dos buritis de Arinos / Do nosso eterno amor.

A letra do hino, de autoria de João Duarte Campos, é bem conhecida na cidade, de maneira que estranhei a pergunta do garoto e esperei o momento certo para lhe dar a explicação solicitada. Foi fácil falar sobre Afonso Arinos, escritor de feição regionalista nascido em Paracatu, e que por suas obras, entre elas "Pelo sertão" e "Os jagunços", foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras.

- Pois bem, Ricardo, o Afonso Arinos descrevia as paisagens do cerrado desta região, onde se destacavam lindas palmeiras chamadas buritis.

Mas encontrei dificuldade para que ele entendesse o que são buritis.

- Ora, moramos juntos dessas palmeiras, elas estão por todo lugar! São as mais elegantes. De tão bonitas, a sede do Governo do Distrito Federal chama-se Palácio dos Buritis.

Mas o Ricardo continuava sem entender, e perguntava: - São aquelas que estão perto da Igreja Matriz?

- Não, aquelas são palmeiras imperiais.

Sou dessas pessoas que gostam de comprovar aquilo que falam, de maneira que achei muito fácil combinar uma volta pela cidade com o Ricardo para ver os tais “buritis de Arinos”, e assim ele não os confundisse com os cocos xodós, guarirobas e outras palmeiras do cerrado. Muito menos com essas palmeiras imperiais, que nem mesmo são brasileiras.

Eram três da tarde e o sol queimava no céu, mas eu tinha prometido um sorvete por conta do passeio e lá veio o Ricardo trazendo consigo um amigo. Ia ser rápido, eu presumia.

Se você conhece o cerrado, sabe que a palmeira buriti é vegetação típica de vereda ou beira de córrego. Portanto, já adivinhou para onde eu estava levando os dois garotos: a beira do Córrego Rico, onde certamente haveria muitos.

Paramos junto à ponte que liga os bairros Santana e Paracatuzinho, vasculhando junto às beiradas, mas nenhum buriti. Ora, pensei, provavelmente a destruição provocada pelo garimpo naquela área tenha eliminado os buritis.

Aproveitei a oportunidade para falar de meio ambiente, degradação ambiental, respeito pela natureza e todos esses discursos que pessoas da minha geração andam fazendo de graça. Então, seguimos para a outra ponte sobre o córrego, aquela que liga o Paracatuzinho com o Arraial D’Angola.

Não é que a situação era a mesma?! Que absurdo, as margens do Córrego Rico não têm mais buritis?! Pior, foi difícil achar o córrego, hoje um filete minguado de água suja que se esvai entre a vegetação rasteira.

Mais um discurso ambiental, vejam vocês jovens, não tem muitos anos as pessoas nadavam neste local, as mulheres vinham aqui lavar roupa, havia muita água limpa neste córrego e blá, blá, blá.

Nessa altura, eu estava com medo de decepcionar meus jovens educandos, haveria que encontrar um buriti, muitos buritis. Se o Córrego Rico não os tem, vamos ver o Córrego Pobre, por lá não andaram garimpeiros, ele nunca teve ouro.

Para quem não sabe, o Córrego Pobre é esse que desce entre o Centro da cidade e o Alto do Córrego e vai desembocar no Rico, bem ao lado do campo de futebol do Santana. Nós o seguimos da nascente até à desembocadura. Sabe quantos buritis encontramos? Nenhum.

Comecei a perceber uma certa zombaria nos olhares e risinhos dos garotos e vi que já não cabia lição ambientalista: - Afinal, quem matou os buritis, não foram vocês, os mais velhos?

Mas, oh, pasmem, os buritis não foram mortos em vão! Centenas de palmeiras imperiais estão sendo plantadas na cidade. Nós as vimos por todo canto. Ao longo do trajeto urbano da BR-040 foram eliminadas todas as espécies inferiores do cerrado e plantadas centenas de palmeiras imperiais. Sua presença, civilizadora e chique, se impõe nas praças públicas e nas construções modernas.

Esse nome “imperial” caiu mesmo no gosto da gente deste lugar!

E daí? E os nossos garotos? Paguei-lhes o sorvete e me redimi aos seus olhinhos infantis. Eles ainda viverão muitos anos para perceberem que a nossa cidade não tem identidade. Até lá, o estribilho do Hino a Paracatu haverá de ser mudado: Paracatu do Príncipe / Do ouro e das palmeiras imperiais / Morte aos buritis de Arinos / ...

Caro leitor, ajude-me a concluir o estribilho.

Márcio José dos Santos
Paracatu, 19 de março de 2009.
Crônica publicada no jornal O Movimento, edição 350, de 1-15/4/2009.


Marcadores:meio ambiente; paracatu; buritis; degradação ambiental; mineração; garimpo; educação ambiental.

quinta-feira, 19 de março de 2009

REFLEXÕES SOBRE A PAZ

Parte II


O que fazer para conquistar a Paz de Jesus?

Ao nos propor a Sua paz, Jesus se colocou como o caminho para conquistá-la. O caminho está para nós delineado, mas só teremos a visão completa de seus contornos à medida que o percorrermos. Sendo nossa caminhada eterna, o caminho é infinito e a paz só se encontra ao longo dele, para todos que o percorrem.

No conjunto de Seu testamento e nos exemplos que edificou, Jesus deixa claro que, para conquistar a paz, teremos que nos desarmar, não apenas dos instrumentos de ataque e defesa, mas também dos pensamentos, intenções e sentimentos maus que poderemos ter em relação aos outros. Saber ouvir e saber calar são atitudes sábias no caminho da paz. Pretender criar ou manter um ambiente de paz e, ao mesmo tempo, armar-se contra o outro é mistificar-se e iludir-se.

Para obter a paz e mantê-la é preciso aprender a abrir mão de posições em benefício do outro, se isso não vier ferir valores permanentes, princípios éticos ou legais, e não causar danos a outrem; como também é preciso firmar-se em posições na defesa dos valores determinados pela lei de amor e caridade.

Quando Jesus diz “Não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize!”, Ele nos dá a garantia de que, perante a eternidade jamais estaremos nos prejudicando ao abraçar a paz, mesmo que isto possa nos parecer promessa vã diante de reveses momentâneos. É fato, também, que uma atitude pacífica cria defesas contra as agressões, porque cada indivíduo vive no campo ou ambiente psíquico criado por ele próprio, cujas emanações energéticas atraem ou repelem campos similares ou opostos. Principalmente para nós encarnados, que vivemos numa esfera onde pulula um sem-número de desencarnados de baixo padrão vibratório, manter o campo psíquico em padrão elevado, e assim sintonizar-se com esferas também elevadas, é a única garantia de proteção efetiva.

A mansidão é privilégio daqueles que conhecem a paz, mas os cuidados e os atropelos do mundo reclamam prudência, através da vigilância e da oração, pedindo socorro ao Alto para cobrir as suas imperfeições, tornando a paz duradoura. Nesse caminhar, cada atitude deve ser revista, analisada sob o crivo da lei do amor e da caridade e, se não condiz com a paz, deve ser rapidamente corrigida.

O desejo voluptuoso é um cruel inimigo da paz, semeador de conflitos, desarmonia e sofrimentos. Os desejos e as paixões alimentam a roda da vida, são condição de progresso da humanidade, quando estão sob o controle do homem. Entretanto, os defeitos morais, entre eles o orgulho, o egoísmo e a vaidade tornam o homem insaciável em seus desejos, subjugando-o e levando-o à destruição da paz.

É certo que uma das maiores dificuldades no caminho da paz é o perdão. Muitas vezes, o discípulo de Jesus se deparará com situações de grande dificuldade para a concessão do perdão. É tão crucial essa questão que Jesus a explicitou com um gesto extremo, ao ser crucificado, concedendo perdão e rogando ao Pai que perdoasse àqueles que o martirizavam. Ao se deparar com tal situação, toda força interior terá de ser mobilizada, porque nesse momento o discípulo estará diante de uma prova que faz parte do seu plano de vida e para a qual foi preparado, contando com o apoio do Mestre.

Enfim, a paz de Jesus se confunde com a caminhada, construída a cada passo, partindo do interior e se projetando no outro, e aquele que a tem converte-se em instrumento da paz do Senhor.

Oh, Senhor, fazei-me instrumento de Vossa paz!

Márcio José dos Santos

sábado, 7 de março de 2009

Reminiscências

"Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre. Eu fui feliz para sempre na minha infância (...)"
José Eduardo Agualuza em "O vendedor de passados"


O quintal me parecia enorme. Bem junto à rua estava plantada a casa e, na outra extremidade, que terminava na meia encosta de um morro, havia algumas fruteiras plantadas por meu irmão mais velho, o Gil. Nós nos referíamos àquele local como “lá nas bananeiras”, porque ali se destacavam alguns pés de banana, que mal produziam, mas eram freqüentados nas horas do aperto das necessidades fisiológicas, apreciado então pelo sossego e isolamento. Entre a casa e as bananeiras havia uma horta, cuidada com muito carinho, pois era dali que vinham os legumes para acompanhar os pratos simples e cotidianos da refeição caseira.

Falando assim, parece pouco, mas havia outras coisas, algumas de breve existência, como uma olaria e uma pocilga, outras mais duradouras, como um muro de tijolos sobre o qual meu pai pretendera erguer uma nova casa, e duas bombas d’água manuais, geralmente acionadas pelas crianças como castigo por alguma travessura.

Jamais consegui dimensionar aquele quintal, assim também a casa, na escala real, pois na minha imaginação eles ocupavam quase o tamanho de meu pequeno mundo infantil. Meus pais eram rigorosos e minhas escapulidas para a rua eram vigiadas, às vezes proibidas, de maneira que casa e quintal se avantajaram sobre tudo o mais.

Sob o piso de tábua da casa havia um porão que servia para tudo: cortar e guardar a lenha, socar café e arroz no pilão de madeira, um poleiro e ninhos para as galinhas e até mesmo para a gente brincar de esconde-esconde.
Era ali que eu me escondia também de Deus, que do alto do céu vigiava as crianças travessas, sempre ameaçadas por Seus castigos terríveis.

A maioria das fruteiras nascia ao acaso, muitas delas se aglomerando a uma certa distância da janela da cozinha, de onde minha mãe lançava os dejetos - sobras de refeições, cascas de legumes, pó de café e, junto com isso, as sementes que iriam dar origem aos mamoeiros, goiabeiras, pimenteiras e pés de abóbora ou de bucha. Quanta saudade do pé de coração-da-índia, nascido na divisa com a casa vizinha, fruta saborosa que hoje sei chamar-se graviola!

Uma tarde quente de verão. Nesta hora do pôr-do-sol minha mãe está sentada na calçada, sombreada e fresca, fazendo arremates nas costuras enquanto conversa com as vizinhas e observa o movimento das crianças na rua. Eu havia feito um estilingue e permaneci no quintal treinando minha pontaria nas lagartixas que viviam nas frestas do muro e que a essa hora tentavam capturar os minúsculos insetos que saiam para a noite. Ouvindo o canto de um pássaro na goiabeira, virei-me bruscamente e disparei, pontaria certeira. O canto cessou, belo gorjear de um pássaro que nunca mais foi ouvido, agora ali imóvel, um filete de sangue a escorrer do bico fechado. Soou o sino da igreja, era a hora da Ave-Maria; eu tinha na mão uma garrinchinha morta e todos diziam que elas eram protegidas de Nossa Senhora – prece muda, pedido de perdão.

Naquele tempo, a última guerra estava bem presente nas conversas que aconteciam na farmácia de meu pai e eu me sentia atraído pelas imagens veiculadas na revista Seleções do Readers Digest, especialmente as que tratavam de batalhas aéreas. Não sei se estou certo, ou se talvez as minhas lembranças exageram, todos os dias pequenos aviões cruzavam o céu daquele lugar. Ao perceber ao longe aquele ronco demorado e triste, eu corria para o quintal e ficava observando o seu avanço até que ele sumia por trás das serras, lá onde o meu mundo acabava.

Os meus medos quase sempre tinham a ver com a figura do diabo, assombrações, histórias medonhas de luzes, bodes e cheiro de enxofre queimado, contadas pelos mais velhos. Fora o porão da casa, onde jamais teria coragem de ir à noite, havia em toda a vila lugares mal-assombrados, como o cemitério, algumas gameleiras, a ponte do Córrego Preto, algumas casas onde o dito-cujo jogava pedras e, acredite quem quiser, atrás da igreja.

Os pesadelos da infância aos poucos se esfumaram, substituídos pelas imagens da vida, às vezes mais cruéis. Um deles teimou permanecer, repetitivo, imutável. Da calçada vejo surgir um avião. É dia, mas o céu tem uma claridade opaca e uma cor sombria. Sinto uma terrível apreensão e tento entrar para dentro de casa, mas agora já estou no fundo do quintal. De lá posso ver que outros aviões surgiram a oeste, e acima mais aviões cruzam o céu. A esta altura já sei tudo o que vai acontecer, é a guerra, e os aparelhos, em grande número, movem-se com rapidez crescente, as esquadrilhas se atacam. Alguns aviões despencam atingidos e, dali onde estou, deitado no solo e observando com terror a batalha, sinto que estarei em um daqueles aviões, que está para ser atingido e precipitar-se para a morte.

O sino da igreja marca o ritmo monótono da vida – seis da manhã, seis da tarde – ou se dobra para anunciar o inesperado. Badaladas lentas e graves acompanham o sepultamento dos mais velhos; rápidas e agudas para a morte de crianças; graves e agudas se misturam para chamar os fiéis. Cada repicar carrega uma mensagem distinta, de júbilo ou tristeza, e a sua sonoridade é o estado d’alma da gente do povoado.

Márcio José dos Santos
Reescrito em 7 de fevereiro de 2009.

terça-feira, 3 de março de 2009

Maria Saracura

Ela era uma negra alta e magra, vestia sempre o mesmo vestido cinza que lhe caía até aos tornozelos e, atravessado em suas ancas estreitas, quase sempre carregava um negrinho, dos doze filhos que tivera. Na vila acanhada, Maria Saracura era a única mulher pública e por seu miserável casebre, isolado das casas de família, passavam os bêbados, os rapazes em busca de experiência e mesmo alguns pais de famílias respeitáveis.

Sobrevivia do que lhe davam os homens e da pesca no pequeno Córrego Preto. Tinha uma maneira peculiar de amarrar o vestido na altura das coxas e, tomando de uma sacola, caminhava ao longo do córrego, pescando com as mãos nas locas onde se escondiam os peixes.

Minha avó, criatura pacífica e bondosa, manifestava violenta antipatia por aquela pobre mulher. Certa vez, Maria Saracura aparecera pedindo-lhe café e, na sua ingenuidade tola, para agradecer o favor recebido, ofendeu a dona da casa, dizendo-lhe: “Vosmicê pode ficar tranqüila que, se eu servir ao vosso marido, não vou contar pra ninguém!”

O ofício granjeou-lhe o desprezo e a antipatia das outras mulheres de Vilas Boas; por conseguinte, os moleques passaram a tratá-la com maldade. Maria Saracura atravessava a vila em passo rápido, olhando ao redor, e, se via a aproximação dos moleques, punha-se a lançar vitupérios e palavras obscenas. Os mais atrevidos corriam por trás dela para lhe puxarem a saia ou acompanhavam o seu passo fazendo-lhe agravos. De suas casas, as mães observavam a cena gozando o acontecimento, ou procuravam interferir, se a Saracura, voltando-se rapidamente, punha-se no encalço dos moleques.

Seu aspecto grotesco e sua violenta reação às malvadezas das pessoas impunham-me um respeito temeroso. Se alguém avisava – lá vem a Maria Saracura! – corria instintivamente para dentro de casa e lá ficava à porta, vendo o que se sucederia.

O que atenuava as relações de Maria Saracura com a comunidade era sua numerosa prole, filha não se sabe de quem ou de quantos. Os filhos vinham-lhe seguidamente. Ela os paria sozinha, à beira do córrego, para onde levava o pouco de que necessitava – uma bacia e panos para embrulhar o recém-nascido. Depois, ali se banhava e, quando voltava para casa, subia caminhando a ladeira da rua com a criança no colo e satisfação estampada no rosto. As mulheres lentamente aproximavam-se, inquietas, na expectativa medrosa de descobrir na criança os traços fisionômicos de seus maridos ou filhos.

Sorriam aliviadas, a criança se parecia com Maria Saracura, rosto sofrido de tantas mulheres!

Márcio José dos Santos
Escrito em Setembro de 1998.